domingo, 11 de outubro de 2015

"Cidadão de bem"


Alerta: durante todo o texto o termo cidadão de bem será exaustivamente citado e colocado entre aspas, considerei que isto poderia tornar o texto difícil de se ler, mas acho que foi realmente necessário

Quando dizemos "cidadão de bem", o que nos vem à mente?

Quando eu era mais novo, me vinha em mente a seguinte definição: "um cara bom". Era algo como o mocinho da história, o cara que cumpria com seus deveres, ajudava os outros era esforçado e servia de exemplo pra qualquer um em qualquer caso.

Eu fui crescendo, conversando com outras pessoas e sempre durante as discussões dizia coisas em defesa do cidadão de bem, até que um dia percebi que o "cidadão de bem" estava se transformando, se tornando um personagem diferente dentro da minha cabeça à medida que eu aprendia mais sobre como uma sociedade funciona.



A definição do cidadão de bem dentro de uma sociedade


Vamos voltar no tempo pra uma sociedade menos organizada, mas que ainda assim era uma sociedade. O homem pré-histórico.
Naquela sociedade primitiva, o homem vivia em pequenos grupos onde tarefas eram distribuídas entre os indivíduos. Tarefas simples como caçar, guardar o esconderijo e cuidar das crianças. Cada indivíduo era "sócio" desse grupo, podia usufruir da caça e da segurança do local onde viviam. Desde aquela época existia uma conduta aceitável e outras inaceitáveis. O indivíduo que fosse violento contra seus iguais ou aquele que causasse tumultos atraindo predadores, era eliminado ou expulso do grupo. Nessa época não existia o conceito de cidadania, mas dá pra ver claramente que certas condutas não eram "bem vistas" naquela sociedade.

O conceito de cidadania surge na Grécia antiga:

"Os homens livres e nascidos nas cidade-estados eram proprietários de terras, formavam a aristocracia rural, e possuíam uma boa condição econômica e social. Conhecidos como eupátridas em Atenas, eram os únicos que possuíam direitos políticos. Vale lembrar que as mulheres e crianças de Atenas não eram considerados cidadãos e, portanto, não podiam participar da vida pública. Formavam a minoria da sociedade." Fonte

Durante a Idade Média, a cidadania não mais podia ser exercida, uma vez que as leis eram ditadas pela Igreja e ir contra a mesma era um comportamento inaceitável. Em resumo, apesar de não haver mais o exercício da cidadania, ainda existia um "cidadão de bem", quero dizer, um comportamento aceitável que consistia em agir de acordo com o que a igreja estabelecia.

O conceito de cidadania ressurge durante o renascimento e vai evoluindo até os dias de hoje.

Sabemos bem que durante a ditadura no Brasil, existiam os "cidadãos de bem" e os "subversivos", ou seja, aqueles que eram favoráveis ao governo (ou que ao menos calavam-se e aceitavam as coisas como eram) e os que eram contra o governo. Ir contra o Estado era por si só um ato criminoso e o indivíduo que ia contra o governo da época tinha todos os seus direitos como cidadão revogados sendo levado pela polícia para ser interrogado, onde na maioria das vezes, por não ter mais direitos, era torturado, seja para que apontasse outros subversivos, comunistas e etc, seja por pura falta de humanidade do torturador. Enfim, existia um conceito de "cidadão de bem" onde ainda que o indivíduo fosse uma "boa pessoa" ele não era considerado um "bom cidadão".

E hoje em dia,qual a definição de "cidadão de bem" ? A definição de cidadão de bem, apesar de não ser "declarada" pelas pessoas, sem utilizar demagogia nenhuma é mais ou menos assim:
- Pessoa que comprova ter pago seus impostos (ou que pelo menos ninguém comprove sonegação)
- Heterossexual
- Preferencialmente branco
- Se casado, ter amante não é bem visto, mas tolerado.
- Favorável ao liberalismo
- Deve ser contra todo e qualquer conceito comunista, socialista ou de qualquer outro modelo econômico que não seja o capitalismo.

Não, não estou exagerando, observe só os motivos pelos quais já fui acusado de ser um "desordeiro":

- Meu transporte é uma bicicleta, com a qual também levo minha filha à escola e por isso sou a favor das ciclovias que foram instaladas em São Paulo.
- Sou favorável à políticas de esquerda, ainda que entenda que até o momento, os modelos socialistas e comunistas aplicados ao redor do mundo não sejam os melhores cenários possíveis.

- Sou a favor de cotas para negros em universidades.
- Sou a favor do casamento gay.
- Sou ateu.
- Sou vegano e o pratico não apenas por questão de saúde, mas por questões ideológicas.
- Não sou casado, mas moro com a mãe da minha filha e já ouvi por isso que vou para o inferno por fornicação.

Para cada uma dessas ideologias das quais acredito, já fui criticado e colocado sob rótulos antônimos ao de "cidadão de bem".

Observando a história, podemos perceber que o "cidadão de bem" é basicamente formado pelo grupo dominante, ou o que forma a maioria de uma sociedade ou que no mínimo "não faça barulho". Quero dizer mesmo que eu possua todas as características do grupo maioritário, se eu começar a apontar os erros do comportamento padrão, eu deixo de ser um cidadão de bem.

Será que eu quero ser um "cidadão de bem"?


Alguns comportamentos que hoje são considerados pela maioria das pessoas como repulsivos, já foram considerados comportamentos de "cidadão de bem".

- O apartheid na África do Sul, já foi comportamento de cidadão de bem.
- A segregação racial nos EUA, já foi comportamento de cidadão de bem.
- O nazismo na Alemanha, já foi comportamento de cidadão de bem.
- A inquisição, já foi comportamento de cidadão de bem deus.
- As mulheres, muito pouco tempo atrás, nem eram cidadãs.
- Escravizar negros, também no Brasil, já foi comportamento de cidadão de bem.

O que me garante que alguns comportamentos que hoje são praticados pelos "cidadãos de bem", não serão igualmente vergonhosos no futuro? Comportamentos como:

- Homofobia.
- Racismo.
- Machismo.
- A imposição da religião cristã aos índios que é feita até hoje afim de eliminar sua cultura.
- A vista grossa que é feita quando se fala "desigualdade social".
- Intolerância religiosa

Se os "maus cidadão" são justamente os que são contra os itens acima, poemos presumir que estas ideologias são apoiados por quem? Quero dizer, mesmo que não se apoie estas ideologias abertamente, calar-se, faz parte do comportamento necessário para ser um "cidadão de bem" (lembrando que tumultuadores são expulsos do grupo).

Se eu quero ser considerado um cidadão de bem?
Respondo rápido: Cidadão de bem é "meuzovo".

Um comentário:

  1. Esta é a evolução da sociedade, com ela os conceitos também evoluem. Seja na negativa ou na positiva isso é um fenômeno normal.
    Tudo é uma questão de interpretação de povos, culturas onde em cada lugar poderá se deparar com conceitos diferentes de cidadania.
    Veja no oriente médio, excepcionalmente em países muçulmanos onde o conceito de "cidadão de bem" é visivelmente diferente dos países liberais. O mundo e o sobretudo o homem e as suas diversas sociedades passaram por muitas mudanças, tudo em prol da boa convivência mesmo em sua maioria sendo de forma ditadora e em muitas vezes extremista.
    Opinião é algo complicado, pois cada indivíduo tem a sua e a defende com seus argumentos baseados na auto-interpretação de factos. No caso, entendo que na sociedade existe uma postura aceitável e por vezes exigida para uma boa relação entre as comunidades e isso é, de certa forma um padrão. Todos os exemplos citados são válidos, mas se o cidadão que hoje é marginalizado por contestar o padrão social, para que mude o conceito de "cidadão de bem" ele terá que mudar a sociedade, ou integrar-se no contexto atual. Do contrário, o processo de evolução levará o seu tempo mediante aos eventos e consequências que afetam a sociedade de geração a geração.

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